segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Cântico negro







Uma prenda que recebi hoje de alguém que gosto muito!


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!
"Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí!
Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?´
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
José Régio

4 comentários:

Elsa C. disse...

Adoro este poema. É uma Ode à autonomia, ao pensamento e à acção esclarecidas!
É obrigatório nas minhas aulas.
É obrigatório para todo aquele que é inconformista, que não se resigna ante as adversidades - como nós,no actual momento-, e que LUTA. Luta em prol da justiça, da autenticidade, da veracidade, da credibilidade.
Uma escolha excelente.
Parabéns.

Nota: por vezes um poema encerra mais sabedoria que um intrincado sistema filosófico.

Clube ESAmbiente disse...

Sei que não vou por aí. Sei que sou coerente. Que lutarei até às ultimas consequência e defenderei com unhas e dentes a minha identidade. Lutarei contra a cegueira, contra os autistas, os visionários que nos impõem os seus ideais políticos, esquecidos do espaço que ocupam!
Ainda bem que partilhas o mesmo sentimento! Também gosto muito. É sem dúvida um hino àquilo que nos distingue desses animais…
Obrigada por visitares a minha humilde lavra.

Luciana disse...

E afinal, ainda somos uns quantos, os inconformados...
A vida, para ser vivida, tem que ser agitada, não é?
Mesmo que o tal caminho sinuoso não chegue a lado nenhum, mesmo que não haja vitória, pelo menos há um querer mais que se prolonga e nos leva a buscar incessantemente... Que nos leva a dizer não! E assim levaremos já uma grande bagagem.
Crescemos, moldamo-nos e tornamo-nos maiores no nosso querer e na nossa certeza!
Também gosto muito de ti! ;)

Clube ESAmbiente disse...

Obrigada, Luciana, por apareceres em mais um dos meus 'netquartitos'. já acabaste de ler o livro? Vamos ver o filme.Bom fim de semana.bj